HAVUKRUUNU - Tavastland
(Svart Records - clique aqui para adquirir)
PRIMEIRAS IMPRESSÕES
Cinco anos após seu aclamado “Uinuos syömein sota”, a HAVUKRUUNU retorna com um disco que não apenas honra o legado forjado ao longo da última década, mas o transforma em pedra angular de uma nova fase criativa. “Tavastland”, lançado em fevereiro de 2025 pela gravadora Svart Records, é um épico pagão envolto em gelo, fogo, memória e resistência. Não se trata de uma simples continuação: é um recomeço ritualístico, uma reconexão com as raízes mais profundas da banda e de sua terra natal. Um grito ancestral em meio ao silêncio moderno.
Logo nos primeiros segundos de “Kuolematon Laulunhenki”, a atmosfera está selada. Uma introdução narrada em finlandês (aliás, língua que rege todo o disco), quase sussurrada pelos ventos do norte, cede lugar a um turbilhão de riffs cortantes e vocais rasgados, evocando a tradição do black metal nórdico com um senso de urgência que não se via desde os primeiros trabalhos da banda. Esta ferocidade sonora cativa de antemão, já que a banda resgata seus momentos mais brutais em uma composição acima da média. As guitarras de Stefan (também vocalista) e Henkka são um capítulo a parte: ora com riffs extremamente inspirados, ora em solos que atestam a exímia técnica dos músicos (prestando um verdadeiro tributo ao clássico Heavy Metal). A composição logo se expande em camadas, alternando explosões de velocidade com momentos grandiosos de coral em cantos de adoração. Destaco também o belíssimo trabalho de baixo e bateria – dignos de uma audição especial para ambos. Mas o que impressiona mais aqui não é apenas a habilidade técnica — que permanece incontestável — e sim a coesão entre letra, ritmo e intenção. A música canta o espírito imortal da canção — esse “laulunhenki” que jamais perece — como se cada riff fosse um feitiço milenar recitado à beira de uma fogueira em ruínas.
Na sequência, “Yönsynty” abaixa a temperatura emocional e nos conduz a uma jornada mais introspectiva. O nascimento da noite é retratado com lirismo sombrio e amargura serena. A guitarra inicial, entre o acústico e o melódico, cria uma tensão suspensa que se desdobra em melodias doloridas, enquanto a voz se torna confissão e julgamento. O refrão traz ecos de remorso e condenação, onde a noite emerge como juíza das mentiras do dia e guardiã da verdade esquecida. O uso de camadas vocais é aqui mais sutil, porém não menos interessantes. Os riffs, embora menos agressivos, brilham em seu aspecto atmosférico, sustentando o clima com maestria.
Mas é em “Havukruunu ja Talvenvarjo” que o álbum realmente ergue sua bandeira. O peso dos riffs, somado à bateria impiedosa de Kostajainen e ao baixo feroz de Humö — de volta após anos de ausência — cria um cenário de batalha sonora que emula uma marcha contra as forças do esquecimento. A letra é uma ode à guerra, não no sentido literal, mas simbólico: o confronto contra a dissolução cultural, contra o exílio espiritual de um povo. Talvenvarjo, a “Sombra do Inverno”, aparece como entidade recorrente, acompanhando o guerreiro em sua jornada final. O refrão se fixa como mantra: “Se saa syömeni janoamaan / Verta, Tulta ja Kuolemaa”. É impossível não sentir o sangue correr mais rápido ao ouvir. Henkka, nas guitarras, entrega aqui uma performance absolutamente inspirada, com um solo que destila tanto heroísmo quanto desespero.
A faixa-título, “Tavastland”, chega com um tipo de solenidade diferente — menos marcial, mais reflexiva. O riff inicial é soturno, mas elegante, e se desdobra num lamento pela identidade perdida. A letra questiona: o que resta após o batismo forçado? O que sobrevive depois que a religião, o idioma e os símbolos são soterrados por cruzes de pedra? A canção se equilibra entre a poesia da saudade e a raiva contida de quem deseja reconquistar algo que lhe foi arrancado. É uma das músicas mais belas do álbum, não só pela melodia pungente, mas pela honestidade brutal do texto. A repetição do verso “Keskitalven tähtein yö, menneestä muistuttaa” é como um feitiço de proteção — uma invocação à memória.
“Kuoleman Oma” devolve o álbum à sua verve mais agressiva, mas sem perder profundidade. A canção, uma ode à entrega consciente à morte, começa com riffs que soam como uma marcha final. A interpretação vocal de Stefan aqui é particularmente visceral, e suas linhas ecoam com uma solenidade rara: não há medo, só a vontade de abraçar o destino com espada em punho. As linhas de baixo guiam com autoridade a progressão melódica, enquanto solos alternam entre a fúria e a contemplação. A faixa expressa uma aceitação estoica do fim, que não é derrota, mas transcendência — talvez a mais poderosa representação da ideia de “boa morte” dentro do black metal épico.
Em “Unissakävijä”, a narrativa dá uma guinada onírica. Sonâmbulo, o personagem-título é um símbolo da consciência que vaga entre mundos, entre o sono e o despertar, entre a lucidez e o esquecimento. A estrutura da música é menos linear e mais fragmentada, como um sonho mal recordado. Passagens acústicas, vocais distantes e riffs que oscilam entre o atmosférico e o dissonante contribuem para esse clima de perturbação silenciosa. A letra é uma das mais enigmáticas do disco, com referências veladas à melancolia cósmica, à solidão noturna e à angústia da vigília eterna.
“Kun veri sekoittuu lumeen” carrega no título uma imagem poética e brutal: o sangue que se mistura à neve. E é exatamente essa mistura entre o violento e o belo que a faixa oferece. A guitarra de Stefan lidera com riffs que lembram a veterana BATHORY dos anos finais, mas com uma sensibilidade mais melódica e cinematográfica. Os vocais seguem a mesma lógica, alternando gritos desesperados com declamações mais cadenciadas. Aqui, a banda parece disposta a explorar a ideia de legado — de como as ações de um povo se perpetuam mesmo quando os corpos desaparecem. A neve, que encobre tudo, acaba por preservar a memória. E é isso que a música simboliza.
O desfecho vem com “De Miseriis Fennorum”, uma faixa épica de quase onze minutos que resume, com perfeição, o espírito do disco. A construção da música é lenta e deliberada, iniciando com uma melodia quase folk e terminando num clímax arrebatador de solos e coros. É uma carta de despedida e também um manifesto. A letra descreve uma Finlândia ancestral, mas ao mesmo tempo perdida, onde os antigos deuses sussurram entre as árvores e as estrelas vigiam em silêncio. O ouvinte é guiado por uma narrativa que não precisa de tradução para ser sentida — é uma memória coletiva, uma dor antiga que sobrevive nas cordas das guitarras e nos gritos do vocalista.
“Tavastland” é um disco que exige escuta profunda, mas recompensa com generosidade. Não é uma obra de consumo imediato. Ele não oferece refrões fáceis nem estruturas previsíveis. Ao contrário: ele desafia, seduz e, finalmente, conquista. A produção encontra o equilíbrio ideal entre clareza e aspereza, permitindo que todos os instrumentos — inclusive os elementos adicionais como teclados, acústicos e ambientações naturais — respirem e coexistam. É notável como a HAVUKRUUNU consegue soar grandiosa sem parecer artificial, épica sem se tornar caricata.
O álbum marca não só a volta de Humö e uma maturidade evidente no instrumental, mas também uma guinada lírica e emocional importante. A revolta dos Tavastianos contra a cristianização não é apenas pano de fundo — é metáfora para o espírito do álbum como um todo: uma recusa diante da homogeneização, um elogio à diferença, uma homenagem ao que ainda pulsa entre florestas, colinas e rios congelados.
Com Tavastland, a HAVUKRUUNU solidifica seu lugar entre os grandes nomes do pagan black metal contemporâneo, mas faz isso sem repetir fórmulas ou ceder ao conforto da previsibilidade. É um álbum corajoso, que se vale da tradição para construir algo genuinamente novo. Uma obra que não apenas canta o passado, mas que o convoca, o encarna, e o transforma em força viva
VEREDITO
Com Tavastland, a HAVUKRUUNU não apenas retorna — ela renasce com fúria, lirismo e propósito. Este não é apenas um álbum de black metal pagão: é um rito de passagem, um grito contra o esquecimento e uma oferenda à terra que moldou seu som e sua alma. Ao longo de suas faixas, a banda traça um percurso onde a técnica encontra o mito, onde a brutalidade coexiste com o sagrado e onde a memória não é nostalgia, mas resistência ativa.
No fim, o que a banda entrega aqui é mais do que música. É identidade. É alma. É o som de um povo que, mesmo calado pela História, ainda canta — entre árvores silenciosas, em noites de inverno, e no coração daqueles que se recusam a esquecer.
“Tavastland” é, sem dúvida, um dos lançamentos mais marcantes do pagan black metal nos últimos anos. Com composições inspiradas, produção equilibrada e uma carga emocional autêntica, o álbum oferece uma experiência densa, envolvente e cheia de identidade. Se você busca um disco que vai além do comum, que une brutalidade, melodia e significado com maestria, este é um investimento que vale cada segundo de escuta — e cada centavo. A HAVUKRUUNU não apenas mantém seu nível: eleva-o. Comprar “Tavastland” é adquirir um pedaço vivo da alma do norte. Uma pena que este disco passará despercebido pela grande maioria dos amantes desta sonoridade gélida.
NOTA DO REDATOR
Vale — e muito — a pena traduzir as letras de “Tavastland”. Embora cantadas em finlandês, cada faixa carrega um universo simbólico denso, repleto de imagens ancestrais, conflitos espirituais e metáforas profundamente enraizadas na história e na identidade de um povo. Ao traduzir esses versos, o ouvinte mergulha não apenas na narrativa da banda, mas em um imaginário coletivo que dá nova camada de significado à música.
A experiência de escutar o disco com as letras em mãos transforma-se em um verdadeiro ritual de imersão, onde cada palavra decifrada ecoa com ainda mais força entre os riffs, as melodias e os gritos que clamam por memória e resistência.
10/10
(Daniel Aghehost)
TRACK LIST
1. Kuolematon laulunhenki
2. Yönsynty
3. Havukruunu ja talvenvarjo
4. Tavastland
5. Kuoleman oma
6. Unissakävijä
7. Kun veri sekoittuu lumeen
8. De Miseriis Fennorum